domingo


Andava muito devagar, quase imóvel. As mãos ensanguentadas e trêmulas acariciavam as paredes tentando sugar um pouco de força. Nhec, nhec. O centenário assoalho de madeira rangia desdenhoso. “Este lugar...tão familiar parece. Estes quadros, cenários de guerras e batalhas, empoeirados e carcomidos pelo tempo. Tão, tão...estranho. Deja vu. Os pratos de porcelana ainda em cima da mesa, a louça muito lavada e as panelas riscadas de tanto esfregar. Lembra...aquele barulho da mata que vem lá de fora, bate nas janelas acortinadas com aquele tecido que já tinha visto em algum lugar. Os vidros antes polidos agora se encontravam encardidos, verde, escorrendo limo. Aquela sensação ao olhar pra fora, tão sinistra era a mata à noite. Um ar estranho inalando, meio fétido, meio doce, misturado com a essência de rosas que sempre exageravam em espalhar pelos cômodos. Mas da onde aquele cheiro intrigante...aquele cheiro, cheiro de morte.

Ela olhou para os seus pés, pretos, encarvoados, as unhas crescidas e sujas. Não se lembrava de estar vestindo aquelas vestes brancas, e...elas estavam borradas em sangue. Suas pupilas dilataram-se, seu rosto empalideceu, e deu-se por conta que segurava uma seringa na mão esquerda. Uma agulha comprida, a postos. E dentro um líquido transparente avermelhado. Sua boca calava-se, e, gritos e sussurros ecoavam na sua mente. Ficou imóvel, sem reação. Um frio escaldante percorreu a sua espinha e seu corpo todo. Estava imunda, repleta de sangue e terra. Viu-se tateando ao que podia se apoiar, e, paralisada diante aquele espelho de moldura dourada, deparou-se com aquela mulher. Mulher? Estava mais para uma morta viva. Olhos atormentados, estagnados, que, viam não apenas ela, mas também aquela infinita trilha de corpos que se projetava no reflexo.

Arght. Caiu de joelhos no chão. A cabeça girava loucamente, seus olhos entraram em órbita e sua mente explodindo em delírio. Com o baque, a poeira do chão irradiou fuligem negra no ambiente todo. Ela não enxergava nada a sua frente, a não ser o corredor imenso que expandia num tapete vermelho majestoso para a época. Tentando recobrar os sentidos, cambaleou depressiva até que se apoiasse em uma das paredes do corredor. Os quadros de guerra pareciam estar em combate, soldados lutando na frente de lindas donzelas que suspiravam. Uma dor aguda emergia do centro da sua cabeça.  Foi arrastando o que chamava de corpo, putrefato, carregando aquela alma de chumbo, uma perna aqui, outra ali, as mãos já com uma luva de sangue as encobrindo.

Franziu o cenho, esfregou os olhos e viu sua visão clareando aos poucos, as pernas recobrando as forças, a sujeira e a terra desaparecendo do seu corpo. Agora vestia um vestido branco curto, meia calça branca e sapatos brancos. Um chapéu branco estampando uma cruz vermelha sobre sua cabeça. O corredor do hospital estava vazio, silencioso. A noite havia caído. Não sentia dor alguma em seu corpo, mas uma estranha euforia exagerada acompanhada de um sorriso maroto. Seringas com agulhas contornavam o seu quadril, junto de vidrinhos com algum líquido transparente avermelhado. Gases, fitas e esparadrapos nas nádegas.

Sufocando, sufocando, tateava a sua volta procurando qualquer coisa que a sustentasse. Sua mente girando. Esbarrou em algo, uma porta. Deixou que seu corpo desfalecesse sobre ela de modo que a abrisse. Entrou como um baque. Aquele cheiro de essência de rosas. Arght. Visão embaçada. Avistou um móvel no meio da sala. Curioso. Apenas uma poltrona repousava no centro daquele grande aposento. Seus pés juntando a poeira do chão. Seus braços trêmulos e sem força tocaram no objeto. Macio, sedoso. Com certeza tinha muito valor para a época. Madeira vermelha e o estofado em tom vinho com detalhes em dourado que se parecia com damas. Parecia que ela a convidava para que se sentasse. E ela o fez. Deslizou pesada sobre a poltrona, o sangue de suas vestes combinando com a cor do móvel. Seu corpo fadigado entrou em colapso. Uma série de contrações musculares, seus olhos ficaram só em córnea, brancos, sem vida. Cravou as unhas muito sujas naquele algodão vermelho.

Soou o toque de recolher do hospital. Ela caminhava séria, devagar. Sarcástica. Sorria por dentro. Suas mãos viciadas sabiam muito bem o que fazer. Corredor escuro, apenas as janelas abertas refletindo a claridade da lua. Seus sapatos sabiam que barulho era proibido. As ampolas dançando em sua cintura. Pareciam compor um balé, sincronizadas, profissionais. Ela subiu até o terceiro andar. Ela particularmente se sentia muito atraída por aquele corredor. Era mais estreito que os outros demais do hospital, era mais escuro, quase que proibido.

 O quarto 307 estava com a porta semiaberta. Ela olhou cautelosa pros lados. Ninguém. Todos já repousavam silenciosos em seus aposentos. Empurrou de leve a porta, de forma que a fresta ficasse tão estreita que apenas seu corpo pudesse passar. Não tardou a fechá-la assim que se viu dentro do aposento.  Um senhor, mais ou menos 70 anos. Internado por conta de uma pneumonia dormia com dificuldade naquela cama alterada. A enfermeira deu alguns passos cautelosos. Pegou uma seringa e logo se viu deixando escorrer um líquido avermelhado sobre o cilindro de plástico. Fingiu pena, depois gargalhou silenciosa. Apenas duas picadinhas ela pensava. Deu a primeira no braço esquerdo do velho. Ele acordou de sobressalto. Uma mordaça encardida foi posta sobre sua boca, seguindo a aplicação da segunda dose, quando tudo voltou a ficar sereno. Fingiu dó. Sempre fingia.

Essência de rosas. Suas narinas vomitavam o cheiro. Nauseadas, assim como ela. Acordou do transe. Pálida, ensanguentada, cadavérica. Todo o seu passado veio à tona. Tudo aquilo que pensou ter esquecido voltando a atormentá-la. Sua cabeça explodindo em dor. Seus olhos derretendo em lágrimas. Não podia ser verdade. Não podia estar acontecendo. Voltou o seu olhar para aquela seringa que continha um líquido meio avermelhado. Não tinha percebido o quão forte a estava segurando na sua mão esquerda. Sabia o que fazer. Recobrou os sentidos e com um pé atrás do outro voltou a sala onde se encontrava o espelho. Os corpos ainda refletidos nele. Seu passado como um túnel nas suas costas. Aquilo não era humano, não era normal, não era ela.

Os cadáveres pareciam chamá-la, pareciam vivos. Ela via suas mãos estendidas convidando-a a participar daquela montanha de corpos. Ela acenou com a cabeça. Muito trêmula e amargurada, penetrou a agulha no seu braço direito. Apenas duas picadinhas. Precisava ser feito. Sentiu o líquido ardendo nas suas veias, queria gritar, fugir daquela tortura. E então veio a segunda picada. Desta vez passou morfinando sobre sua corrente sanguínea. Sentiu-se mole, meio boba. Caminhou devagar de costas, quando seu corpo desmanchou-se sobre os defuntos. Seus olhos ficaram estáticos, abertos.

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Estudante de Administração de empresas, apaixonada por livros, cores e músicas. Começou no mundo literário escrevendo contos de suspense. Possui a arte como hobby. Desenhista, pintora, escritora e sonhadora.