terça-feira

Schhh. Era melhor que ficasse quieta, imóvel. Deixava que ele percorresse seu corpo, provocando-lhe arrepios. Respiração engasgada, suor sangrando em sua pele. Ele chegou perto de sua boca, ah não, ah não. Ela se viu afogando no que se parecia com turbilhões e maremotos, navio virando ondas perturbadas no oceano azul. Pessoas corriam escadarias abaixo, mas estava tudo confuso, escadas que subiam desciam e escadas que desciam subiam. Ela permanecia estática, como deveria ser.
O teto ria desdenhoso daquele olhar assustado que o mirava. Ela pensou que desfaleceria, a água já devia ter chegado aos pulmões, só podia. Náuseas provocantes a enchiam de calafrios, deixando-o com mais desejo. E então cessou. O apanhador de sonhos girava loucamente, como se não fosse possível impedir esse pesadelo. Um pesadelo? Era tão, tão real.
Molhada em suor, calçou o pé direito no chão, os ruídos do assoalho antigo de madeira quebravam o silêncio da madrugada. O hospital dormia sereno, mas ela sabia que ele estava por perto. O fino véu branco que cobria a janela do quarto dançava com o vento. Tuntum, tuntum. O sangue corria desenfreado em suas veias, o coração palpitando latejante em sua cabeça. Ela podia senti-lo perto.
O soro alfinetando seu braço esquerdo, ah não, uma marca roxa profunda avisava que a agulha se deslocara, o soro percorria solto, causando dores agudas. Mas não era hora de chamar a enfermeira. De um solavanco, arrancou todo aquele emaranhado de canos e fios. As vestes muito encardidas do hospital banharam-se do sangue que jorrava insistente de seu braço esquerdo. Os olhos percorriam rápido os corredores frios, seu coração cada vez mais tenso.
Em cima do criado mudo ainda estava a janta da noite anterior, assim como, junto do prato, os talheres que compunham um garfo e uma faca de serra. Sorriu nervosa e não tardou a percorrer o aposento, pegando a faca. Pelo menos ela lhe daria a sensação de segurança que precisava. Pelo menos a sensação. Tuntum, tuntum.
Parou para analisar tudo o que havia atormentado sua vida. Cenas esplêndidas e as portas de um passado esquecido se abriram diante de seus olhos muito marejados. Não sabia se fora a vítima de um acaso desconhecido ou se fora a autora de seu próprio destino. Antes fosse a primeira opção. Trancou tudo o que bloqueava sua mente, não era hora para que eclodissem os fantasmas de suas lembranças pouco fantasiosas. Trouxe de volta pedaços de um ser que não mais era, tentou recuperar o que o tempo levou embora, mas, a única coisa de que tinha certeza era de que nunca mais seus sentidos seriam tão perceptíveis como antes.
Caminhava silenciosa, sustentando sua alma muito pesada, poderia ser apenas um fardo como qualquer outro, mas nenhum outro era igual a este. Buscava o equilíbrio entre seu corpo e sua mente, mas não era possível que os dois vivessem juntos, a escolha era necessária. Ou acabava com sua mente e tudo se evaporaria ou consumia seu corpo de modo que somente sua alma provaria a sua existência.
O som do alarme soou alto, enfermeiras e médicos não tardaram a descer até o quarto 102. Vestes ensanguentadas estavam esparramadas no chão ao lado de uma faca de serra. A cama desfeita, mas nenhum sinal de corpo presente no quarto.
Em cima do criado mudo uma vela ainda acesa. A chama crepitava em um tom amarelo que em seguida se transformou em um vermelho escarlate, apagando-se. A vela agora expelia uma fumaça muito espessa cor chumbo que combinava com o peso da alma dela.

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Estudante de Administração de empresas, apaixonada por livros, cores e músicas. Começou no mundo literário escrevendo contos de suspense. Possui a arte como hobby. Desenhista, pintora, escritora e sonhadora.