segunda-feira

Seu esqueleto ardeu em torpor. O frio percorreu cada centímetro de sua pele, mascarado pelas pontadas que suas pernas sentiam pelos constantes arrepios. Os punhos se fecharam tentando controlar os nervos que faziam seu corpo todo tremer. Um jato de falsa tranquilidade passou morfinando pela sua corrente sanguínea, talvez durasse algum tempo. O sonho acordando em sua pele, o fazia devanear ao encontro da origem daquela trama. Um teatro onde ele era a marionete, e o destino seu manipulador. Os fios arqueavam e subiam lentamente, puxando consigo toda a pureza de seu ser. Não os via, mas os sentia na carne exposta, movimentos involuntários martirizando sua existência. A voz de mamãe soou nitidamente em sua mente, e as lembranças do que ela sempre lhe dizia vieram a tona. Mamãe não cansava de expor que seu filho precisava de uma boa dose de exorcismo pra tirar toda a sujeira daquele corpinho amaldiçoado, como gostava de proferir. Calado, ele apenas ouvia e continuava com suas brincadeiras pouco comuns. Nunca foi uma criança de muitos amigos, segundo ele seus companheiros imaginários o entendiam melhor. Claro que mamãe notava a anormalidade de seu filho, mas veio a descobrir, creio eu que tarde demais, que ele possuia uma afeição um tanto curiosa com olhos. Sim, olhos humanos. Seu olhar era tão penetrante que ele se via caindo em um abismo infinito toda a vez que tentava encarar alguém. Por isso caminhava com o rosto baixo, onde não corria o risco de perder o equilíbrio outra vez. Sua íris possuia uma cor característica, um tom melado enegrecido, de uma beleza incomparável. Mas ele não entendia o porquê era diferente das outras crianças, e muito menos por que as pessoas o evitavam olhar nos olhos, embora a beleza fascinante as atraísse. Respondia em tom seco às perguntas feitas a ele, mas não deixava de ser doce. Sem dúvida era uma criança que intrigava, mas mamãe preferia ver nele uma aberração. E agora ele estava lá, contorcendo as lembranças em sua mente, ao passo que seu corpo lutava inutilmente para o tirar daquela situação. Tão, tão diferente. Fazia dois anos que mamãe falecera, o retrato encardido dela continuava a repousar tristemente em sua cômoda carcomida pelo tempo. Agora ela parecia sorrir na foto, algo curioso, porque ela nunca fora de abrir seus lábios, a não ser quando esbravejava. Pensou ser sua imaginação, ou seria apenas um ângulo pelo qual nunca tinha visto? Não sei, mas nem ele tinha as respostas para esses acontecimentos. Talvez estivesse delirando, mesmo com a morfina ainda acariciando as paredes de suas veias. Nunca conhecera seu pai, não que fosse de algum interesse, mas talvez ele soubesse o capítulo final de sua história. Mamãe nunca o mencionava, exceto quando seus atos a faziam lembrar-se dele. Pra ele nunca representou algum sinal positivo. Cresceu em meio a exclusões, xingamentos e rejeições, mas não passava de uma preliminar pro que viria a eclodir. Seu forte coração pulsava incessante, em ritmos desparelhos, como se ele tentasse acalmar-lhe porém algo lá dentro queria o oposto. As imagens de sua infância percorreram como um filme, e ao desenterrar seu passado algo explodiu da sua alma, seus olhos tornaram-se fogosos e tudo ao seu redor ardeu em chamas. Mamãe parecia dar gargalhadas no seu retrato, e ele riu com ela. Arrebentou as cordas imaginárias que o seguravam, e descobriu ser o poder de sua mente mal controlada. A fera libertou-se e ele caminhou lentamente até o fogo, vendo-o crepitar e tudo ao seu redor ser engolido por labaredas famintas.  

sexta-feira

Que doce bem salgado. Mas por quê o sorriso se abriu de tal maneira que iluminou algo obscuro lá de dentro? Talvez não houvesse alguma explicação lógica para tal feito, sem nada de praxe. Mas não estava procurando uma. Seu caso era apenas mais um toque de interesse, pra fugir da rotina. Gosto de açúcar com sabor de sal. Conseguiria retornar ao presente, mas de que adianta um ser inválido ocupando espaço em uma cama, com pernas gordas  e coração pulsante? Não era mais que um objeto, um objeto de interesse, quem sabe. Aos poucos suas pálpebras retornaram ao foco. Os olhos? Cegos na claridão. Pessoas chegavam e ele se sentiu um bicho de zoológico. Seria a atração principal? Naquele tédio de dia, podia até ser. Mas ninguém sentia a euforia que ele carregava no peito. E ela crescia, e lentamente seus dedos começaram a se movimentar. Mais pessoas chegavam e admiravam pasmas o acontecido. Sua cabeça latejou, e era como se fosse explodir. Rupturas se abriam e o líquido vermelho escarlate escorreu em suas veias. Formigou tão forte que, por um segundo, pensou que perderia seus membros pela segunda vez. Mas com um baque tudo cessou. Seus olhos se fecharam, mas agora por vontade própria. Sua retina havia se desacostumado com a claridade do dia. Não se importou. Levantou da cama e seu inchume havia se dissipado. Abriu os olhos e caminhou, provando a todos que havia retornado.

domingo

"Capacidade é algo relativo. Mas como qualquer boa resposta vaga, esse seria apenas mais um argumento vazio, oco. Talvez fosse prudente analisar a mente do indivíduo que respondeu de tal maneira a uma simples pergunta. Provavelmente encontraria um cérebro tão grande quanto uma minhoca. Um pouco de sarcasmo, esperto? Não estou aqui fazendo discrepâncias entre cérebros, até porque seria comum um pouco de normalidade. Mas o que é ser normal? Poderia um louco ser. Apenas algum conceito, tão pouco fundamentado quanto aquela resposta vaga de início.Fim." Pousou a caneta na mesa e suas mãos se encontraram entre a sua cabeça baixa, pressionando-a. O relógio cantarolava em um tic-tac incansável, marcava agora 3:35 da manhã. Sua enxaqueca matava-o aos poucos, e a xícara com o café frio descansava na mesa de mármore de seu escritório. Era frustrado como escritor, mas o que seria mais simples que uma autobiografia de seu passado? Talvez assim conseguisse algum crédito entre os leitores. Essa seria a última tentativa. Fraco? Eu diria desmotivado. Sua mente o encontrou cochilando entre o amontoado de papéis e livros, e resolveu dar um tempo, desacordar junto a ele. Mas ela não parou, continuou com as engrenagens em pleno vapor, e algo foi surgindo em meio a correria de seus pensamentos. Mas como demonstrar a ele? Em meio a um sonho, é claro. Suas mãos se ergueram aos céus e ele se viu no meio da multidão, todos o aplaudindo pelo grande sucesso de lançamento de seu livro "Cem sentido com C". Talvez esse fosse o segredo, algo que intrigasse o leitor sem precisar dar explicações ou muitas respostas. Era isso, ele pensou. Sorriu ao povo e agradeceu os elogios, preparando-se para a sessão de autógrafos. Nada podia ser mais superfantástico que esse momento. Glória, fama e fortuna, era o que sempre sonhou. O que faltava era fazer da fantasia um fato. Ela resolveu que era hora de fazê-lo retornar ao mundo real. De um sobressalto suas pálpebras abriram e foi como se uma ideia tivesse brotado de seu cérebro enquanto dormia. Vasculhou rapidamente a procura de sua caneta, algo precisava ser escrito, modificado, urgente. Sua mão começou um movimento involuntário, parecia que alguma força a tinha possuído e agora estava dissipando-se na forma de palavras. Seus olhos giraram em órbita e seus sentidos voaram acelerados pela adrenalina. Continuava consciente, mas seu corpo não respondia a seus comandos. No seu interior estava assustado, muito assustado, mas ao mesmo tempo curioso pelas respostas. Finalmente a mão cessou e seus olhos voltaram a lhe obedecer. Suspirou profundamente antes de ler as palavras proféticas, optou por assim dizer. Entre as linhas pretas encardidas de seu caderno, as seguintes palavras repousavam sobre o papel "Fama e fortuna terás, mas não aguentarás o peso delas na pele, e padecerá". Ouviu uma batida na porta e cautelosamente foi checar. Uma fila imensa diante de sua porta clamava seu nome, queriam autógrafos de seu mais recente lançamento. Mas ele sabia o que fazer. Fechou as janelas e permaneceu silencioso na sua poltrona, enquanto a fama, a glória e a fortuna morriam, mas não com ele.        

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Estudante de Administração de empresas, apaixonada por livros, cores e músicas. Começou no mundo literário escrevendo contos de suspense. Possui a arte como hobby. Desenhista, pintora, escritora e sonhadora.