- Amarelas
são as ondas que batem em navios azuis. - A menininha disse alegre.
- Não,
meu bem. Azuis são as ondas que batem em navios amarelos. -
Corrigiu papai com um sorriso.
Passou
a mão na cabeça da filha. Como era amada. Seus cabelos loiríssimos
muito lisos faiscavam com os raios de sol. Estavam sentados no porto,
ela e papai. Os navios passavam e ela não escondia o fascínio em
seu rosto.
- Papai,
mamãe foi de navio até o céu? - intrigou-se a menina.
Como
ela era parecida com a mãe. Ele ficou contemplando por alguns
momentos aqueles lindos olhos verde esmeralda que agora estavam com
um ar pensativo. Apontou para uma nuvem baixa que se projetava logo
acima deles.
- Está
vendo aquela nuvem logo ali? - desafiou papai.
- Sim.
– ela continuava sem entender.
- Ela
se parece com o que para você?
- Hum,
se parece com um grande urso.
As
sombras a envolviam por inteira. Seus olhos muito claros agora
estavam embaçados pela névoa. Nada a sua volta mostrava um
caminhos, uma direção. Sua mão direita tocava o rochedo já sem
fôlego. Havia caminhado por horas em um sol escaldante que, agora
desaparecido, dava lugar àquele mar de vento congelante. Seu sangue
fervendo cada poro de sua pele. A cabeça latejando e o tremor
bamboleando cada centímetro de músculo que ainda sobrevivia nela.
Aquilo urrava em seu peito, um coração dilacerado que fora
costurado tantas vezes. Mas agora os pontos se abriam e saltavam como
faíscas a procura de ar. Caiu de joelhos no chão arenoso.
Respiração engasgada, um banho de suor revestia sua pele. Ainda de
joelhos se arrastou até as bordas daquilo que se parecia com um
vulcão de areia vermelha. Como havia parado ali? Ela se perguntava e
as ideias percorriam sua mente em flashes, apenas uma pequena
recordação.
- Papai,
o navio é tão grande por dentro quanto é por fora?
- Você
quer conhecer?
- Sim,
quem sabe encontramos a mamãe no caminho. - os olhos dela
irradiavam.
Claro
que ela parecia mais atrativa com aquele vestido branco flamê. Um
pequeno decote que vinha da barra da saia até o meio da coxa. A
parte de cima terminando com um rendado em canoa. Levou os dedos a
boca, transparecendo o brilho do seu anel perolado. As unhas em tom
vermelho escarlate contrastando com o rímel muito preto em seus
olhos cor de mel. Os cabelos negros e longos desciam escorridos até
a metade das costas seminuas. Tinha um sorriso intrigante e um olhar
calado. Os lábios finos e delicados abriam-se para receber um gole
da espumante, e as pernas cruzavam-se para deixar a mostra o sapato
cor de seda. Laços de cetim amarravam-se nos tornozelos dela. Embora
séria, era bonita. Mesmo que calada, muito misteriosa.
- Que
salão bonito, papai! - ela se embalava com as músicas do baile.
- Maravilhoso
querida. - ele sentia o aroma do buffet que se encontrava no centro
daquela ala do navio.
Todos
muito bem vestidos. Era uma ocasião especial. A menina com um
vestido rosa chiclé contrastando com seus olhos muito claros. E ele
com um terno de muito bom gosto que fora importado da Itália, com
direito a abotoaduras em ouro. Tinham uma mesa reservada só para os
três, ela, papai e a mamãe. Mamãe já estava sentada na mesa
saboreando a espumante. Os olhos dele irradiaram quando a viu.
Acordou
atordoada em meio aquela tempestade de areia. A cabeça martirizando
a sua existência. As costas recebendo pontadas agudas de dor,
parecia que estava em meio a batalhas medievais, onde lanças
pontudas investiam sem dó. A insolação já estava provocando
delírios e miragens, lembranças que não existiram. Tudo havia
acabado pra ela. Mamãe havia morrido e papai anos depois descobrira
um câncer que o matou lentamente. Ela estava perdida em meio ao
deserto, sozinha. Sua pele muito clara estava vermelha, o couro
cabeludo ardendo em fogo. Nada tinha mais sentido, nada mais poderia
curar aquela ferida, preencher o vazio de tudo aquilo que fora tirado
dela.
O
cheiro de flor era delicioso. Esboçou um sorriso sem graça, mas
lágrimas rolaram na sua face. Estava sentada no porto. Trouxera
algumas flores, aquelas preferidas de mamãe. Begônias. O céu
repleto de nuvens e o sol com seu brilho intenso. Uma nuvem se
parecendo com um grande urso. Alguns navios atracados no porto, junto
de algumas memórias que causavam nostalgia. Tirou pétala por pétala
e as jogou no mar, como querendo que a dor fosse embora junto delas.
Ficou um tempo comtemplando as begônias desmanchando-se na água.
Olhou para o céu com os olhos marejados e quis abraçar aquele
grande urso lá em cima.